domingo, 26 de julho de 2015

A cópia



As coisas não funcionaram dentro do previsto e por isso estou de volta e por isso trouxe comigo a minha mulher doente, esta com o rosto escondido. Vamos ficar aqui, num cantinho qualquer, caso não seja incômodo, e prometo procurar emprego, todos os dias, mesmo que não haja emprego para um homem de sessenta anos. Além disso, tenho uma longa história para contar e espero sua paciência e compaixão, se não é pedir muito.

Minha vinda para sua casa tem um motivo. Por enquanto, enquanto me ajeito aqui, quero sua atenção para o fato de que seu ex-marido morreu há muitos anos e eu sou apenas uma cópia dele, feita às pressas, instruída para procurá-la e mais do que isso – vim por vontade. Não pergunte por quê; é assim. Não tenho maiores pormenores; seu marido esforçou-se para dar mais detalhes, mas só disse “vá”. Fechou os olhinhos e seguiu em outra direção. Cumpro minha palavra e minha natureza e estou em sua casa com minha mulher doente, aliás, mulher dele, deixada viúva, quase não fala.

É uma situação complicada e um pouco destoante do senso comum. Talvez destoante demais. Além disso, não sei explicar-me direito, como cópia, porque sou igual ao que ele era e desse modo sou ele. Eu entendo a sua cara de espanto e até agradeço. Prova de que ouve minha história de cópia de seu ex-marido, um homem que você não vê há uns vinte anos. Então, deve se perguntar: por que eu (ele) voltaria depois de tanto tempo? Que palhaçada é essa de cópia?

Fosse só isso, eu sei, dava para levar dentro do seu arsenal de palavras e vivências, mas agora tem um dado bem além, pois embora eu tenha os mesmos jeitos e gestos de seu marido, um processo qualquer deu errado – ou certo, depende – e detectei em mim uns pedaços que não são dele, eu sinto, e esses pedaços, meus, exclusivos, pensam outras coisas.  Sou seu ex-marido até certo ponto – gostou do cheiro? -, mas sinto outro tipo de intimidade com você, a minha, a da cópia, não a dele, o original.

Minha mulher doente tem cara de doente. Tudo o que se imaginar em literatura está em seu rosto mortiço, pele macilenta, maçãs do rosto afundadas. Tosse e tem delírios. Ela não sabe o que se passa, pois não viu a morte do marido e acha que tudo é produto da doença. Basta ela tirar esse xale em que ela se esconde de medo.

Também é importante deixar claro que voltei para ficar. Estou aqui a partir de agora, sem dinheiro, e ainda por cima trazendo comigo uma mulher doente. Lembro-me dela antes, saudável, sentada numa varanda, olhando o tempo passar, numa recordação minha; não dele.  A vinda aqui é de entendimento, portanto. Se você pensa que sei mais desse acorrido, com seus resultados bizarros, está enganada. Uma cópia só sabe que é cópia e um pouco mais, talvez o bastante. Não sabe por quê. Tenho registro para vir aqui e cá estou; mas não é apenas isso. Ainda tenho restos de memórias sobre outra vida, em que talvez eu não fosse cópia, e em que você está sentada, numa varanda, olhando o tempo passar.  


A razão principal da minha volta, no entanto, é outra. Voltei porque você também é cópia. Cópia dela, da minha mulher doente, da mulher dele doente, e quero continuar com você, pelo resto da vida, porque ela, agora mostrando o rosto, está indo embora daqui pouco, deixando partes em sua vida, e pelo jeito é assim que funciona. Só não sabemos por quê. 

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