Bem-vindos à Igreja da Dúvida. Divagaremos em nome de Deus, ou
de outros nomes, pois nosso sagrado templo nasceu da incerteza e do acaso,
perdeu-se no tiroteio cósmico, mas achou-se entre pessoas de boa vontade e
espírito aberto, caso haja espírito. Não sabemos muito e do pouco que sabemos
ainda nos restam imprecisões e ambiguidades. Por isso, nossas preces são em
forma de perguntas, e embora nenhuma delas tenha sido respondida até agora,
contamos com cenários possíveis e alinhamos histórias conciliáveis, teorias e
suposições. Por isso, perguntamos, em cada culto, se Deus existe e como Ele
opera. Ou se não existe. De qualquer forma, depois da revelação – seja ela
qual, for -, fecharemos a igreja.
Gari
Depois da coleta, costumo tomar um banho demorado. Aos poucos,
vai clareando, uma saída aponta, me sinto lindo e cheiroso, mas logo é hora de
deitar e dormir para mais lixo no dia seguinte. Na nova jornada, o uniforme
limpo vai ganhando de novo seu cheiro de verdura podre e suor, enquanto corro
atrás do caminhão, com sacos pretos nas costas; enquanto troco algumas ideias
sobre futebol e a vida.
Cruzeiros
De navio, não. Bossa nova em ritmo de bolero, o bufê com o mesmo
gosto, pessoas cheias de cordão de ouro, falando as merdas que os desconhecidos
falam. Sem contar que o mar é chato quando só tem mar o tempo todo, pelo menos
eu acho, nem precisa concordar comigo; só sei que não vou, ela disse e era
definitivo. Não iria. Nunca esteve num cruzeiro marítimo, mas tinha uma ideia
de como são. Só pensa naquele pequeno necrotério do porão, onde guardam os marinheiros
de última viagem - os velhinhos; eles e suas cadeiras estiradas no convés,
quase todos pensando em suas vidas de maneira estatística e melancólica.
Mar da Tranquilidade
Nua, olhando a lua. Marina estava deitada com seus pelos
apontados para o Mar da tranquilidade, lá em cima, com sua visão telescópica de
fêmea sadia, enquanto caía uma chuva fraca na praia, em 1978, o ano-base de
nossas vidas. Sem 1978 não seríamos o que somos, os filhos não teriam nascido,
o mundo não teria graça, quase não existiríamos. Aquele foi um dia de sorte,
uma confluência de acasos, entre infinitas possibilidade, e aquela era a nossa,
no meio de trilhões. Sua beleza inebriante não era tudo. O jeito como ela
falava, no entanto, era. Achamo-nos no romantismo tardio, mas depois veio a
realidade, naturalista, a mão afagando o pau-pedra, intumescimentos,
necessidades, desambiguação, Et Cetera. Tudo conforme o vaivém das ondas, numa
coordenação perfeita, apesar da areia atritando rugas internas e o território
circunciso.
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