Não havia plano B e o A era fraquinho. A
ideia: comprar guarda-chuvas e vendê-los na Avenida Paulista em dias de
temporal, na saída do metrô. Comprei. Investi o que restava na mercadoria e
desde então não choveu. Todo dia eu olhava a previsão do tempo. Nada. 0 mm. Em
casa, o estoque de comida estava no fim e numa tarde, antes de cortarem a luz,
vi na TV que o Estado enfrentaria uma seca, talvez a maior de todos os tempos,
consequência do El Niño, ventos alísios soprando no sentido oeste, através do
Oceano Pacífico tropical, com imensa repercussão em minha vida. Tudo ocorre por
acaso, mas o acaso beneficia mais uns do que outros, aleatoriamente, sem
sentindo, e é isso que chamam de azar - as repetições desastrosas em uma lista
de repetições infinitas, como se a roleta só parasse no 1, eternamente, porque
também é uma possibilidade.
Nessa época conheci Adélia, num ponto de
ônibus. Contei minha situação. Ela tinha uma história parecida. Em pouco tempo
ficamos amigos. Adélia pagava minha passagem com vale-transporte. Eu levava
dois ou três guarda-chuvas. Esperava um erro da meteorologia. Só que a
meteorologia já não errava mais. Virou uma coisa sagrada, como a Bíblia;
está escrito, assim será. Existem onze
mil estações meteorológicas no mundo, sem contar os satélites geoestacionários
e os de órbita polar. Nas fotos, a Terra era azul, só azul, sem manchas de
nuvens.
Outro problema é que os guarda-chuvas
estavam ficando velhos, jogados pela casa – uma casa desarrumada, cheia de
guarda-chuvas; uns abertos e outros fechados, formando um conjunto estranho,
como uma instalação da Bienal. À noite, no escuro, eu tropeçava naquela coleção
assombrosa. Adélia visitou-me pela primeira em janeiro e conheceu meus urubus esquálidos
e inertes, no meio da sala, alguns com hastes quebradas. No quarto, deitou-se no
colchão sem colcha ou lençóis, desnecessários no calor, e não mostrou espanto
com nada. Estava cansada. Também vivia sua comédia de erros. Tentava vender
cosméticos que ninguém comprava. Falta de tino para os negócios e uma cara
sofrida que não combinava com cosméticos.
Tínhamos trabalho fixo no passado. Adélia
chegou a ser dona de uma loja de antiguidades, mas o estoque acabou. Vendeu
tudo, gastou o dinheiro, entregou o ponto. O mercado de antiguidades tem esse
problema: as coisas precisavam ficar velhas e isso demanda tempo, e quem compra
às vezes não vende; emperra o mercado. Eu escrevia numa revista sobre esoterismo,
mas a revista faliu. A vantagem foi livrar-me dos textos absurdos sobre
fantasmas quânticos, Deus da quinta dimensão e o poder das pirâmides. Nunca
acreditei nessas coisas. Tratava como ficção. Enfim, depois dessas atividades,
ficamos jogados por aí. Lembro que Juntando nosso capital não dava para uma
semana, mesmo com a dieta à base de macarrão e sardinhas em lata. Ela foi
ficando comigo, na escuridão, e depois sem água. Pelo menos fechou os guarda-chuvas e espanou a
poeira.
- Você sabe qual é o coletivo de
guarda-chuvas – perguntou?
- Acho que não existe – respondi. A gente
conversava pouco. No escuro, as palavras vão escasseando, como a água das
torneiras e da chuva. Quando amanhecia era um alívio. Ela saía para tentar
vender seus cosméticos e voltava para tatear comigo dentro da casa. Caíamos na
cama para longos silêncios. Ninguém pensava em sexo, embora fosse uma opção
naquela escassez, sem nada para fazer. Além disso, tomávamos poucos banhos, com
água do vizinho, um lastimoso aposentado com problemas renais. Ele me informava
sobre a previsão do tempo.
- Alguma notícia de chuva?
- Nada – dizia o vizinho – O problema é no
País inteiro, quem sabe no mundo inteiro.
Nenhuma frente fria a caminho, enquanto a
poeira já cobria o céu da cidade, junto com a fuligem da poluição, enquanto o sol
caia avermelhado nos lados da Cantareira, enquanto Adélia continuava sem vender
cosméticos. Ela costumava a culpar a falta de sorte – não pronunciava a palavra
azar – e eu achava que alguma coisa deveria acontecer antes de ter que vender a
casinha a rumar para outro lugar, um lugar que chovesse. Vendi um computador
velho e a TV – sem energia e sem internet só faziam ocupar espaço. Nem pensava em outro trabalho. Os
guarda-chuvas se tornaram uma obsessão. Primeiro apenas minha, depois de
Adélia.
- Guarda-chuvas podem ter outra utilidade –
ela dizia, como se estivesse a ponto de lançar uma boa ideia. Não tinha. Talvez
para proteger as pessoas do sol, eu pensei, mas isso passou, desde o império nem
têm essa utilidade, e antes, há 3400 anos, na Mesopotâmia, um negócio parecido
com guarda-chuva – aliás, guarda-sol - era levado por escravos para livrar os
reis da insolação. Agora, as pessoas preferem protetores solares.
De certa forma estávamos presos aos
guarda-chuvas ou à ideia de que guarda-chuvas, naquela crise imensa, do clima e
das finanças, pudesse ser a chave-mestra para uma saída. Porém não chovia,
repetia-se o número 1, dormíamos no escuro, Adélia saía para não vender
cosméticos pela manhã e o vizinho informava que não iria chover.
- Por que não jogamos os guarda-chuvas no
lixo? – sugeriu Adélia
– Porque pode chover assim que a gente
fizer isso – eu respondi, olhando para o céu sem nuvens.
No dia em que o vizinho morreu de sua
doença renal, caíram alguns pingos, e achei que chegara a hora de partir para o
cemitério levando meu estoque, e parecia que finalmente chegara o momento, pois
caíram uns pingos e depois ouvimos um trovão, e seguimos no carro funerário
junto com os guarda-chuvas e o cadáver, olhando como a chuvinha ganhava força de
tempestade. A água já escorria pelo meio fio e o trânsito começava a parar. À
beira da cova, poderíamos proteger os parentes e amigos do morto, cobrando
cinco reais para protegê-los do aguaceiro e já seria o começo do negócio no
ramo de guarda-chuvas. Mas quando chegou o momento de todos se juntarem ao
redor da cova, como nos enterros de filmes, o céu clareou de repente, mais uma
vez o número 1, e voltamos para casa, eu e Adélia, abraçados e silenciosos,
para deitar no escuro, como sempre, e esperar o dia seguinte, por uma nova chuva,
a venda de algum cosmético ou qualquer ocorrência singular.
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