sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Cinema


Falo ou não falo com o motorista do táxi? De vez em quando ele também ensaia, girando o volante, como se estivesse também pensando se fala ou não fala comigo. Talvez o tempo bom seja um assunto para romper o silêncio dentro do carro, talvez seja banal demais e paremos por aí. Posso extrair dele mais do que boas histórias, mas também corro o risco da exposição excessiva. Não sei de quem se trata e não posso confiar em ninguém nesta cidade.

O problema é conseguir informações em silêncio, apenas olhando em volta, e outro problema é ter que retornar logo, com o caso do princípio ao fim, embora neste momento eu não tenha uma linha sequer sobre o que procuro, pois ainda não sei o que é. Preciso, portanto, conversar com o motorista do táxi.

- Quanto tempo daqui para o centro? – pergunto, e ele se anima, atencioso, e responde que em dez minutos chegaremos lá, apesar do trânsito, e depois quer saber o que faço na cidade, se estou gostando, se é a primeira vez, essas coisas normais em viagens do aeroporto ao hotel. Acabou o silêncio e o motorista dispara a falar sobre a cidade, recita o nome de todos os lugares bonitos para visitar e quer saber ainda se estou a negócios ou a turismo. Digo “negócios”, por causa do paletó, mas preferia ter dito “turismo” para não levantar suspeitas. Há negócios de todos os tipos e o homem pode imaginar o que quiser a esse respeito, inclusive a verdade.

- Sou corretor – menti –. É uma viagem de rotina. Venho quase toda semana.

- Então o senhor conhece bem a cidade – exclamou meio decepcionado, e lamentou a perda de tempo em enumerar as principais avenidas, até as do subúrbio, além de vangloriar-se de conhecer todas as favelas, onde moram mais de um milhão de pessoas.

Mesmo assim, tomo coragem e sigo a conversa, desta vez mais objetiva, e pergunto se ele soube do ocorrido de ontem, noticiado pelas TVs, sobre o desaparecimento da primeira dama do País, durante uma visita a um shopping. Limito-me a isso, por enquanto, e ele parece informado sobre todos os dados do sequestro. O rádio está sempre ligado.

Numa história pretensamente policial, eu deveria ter mais estofo, função e roteiro a seguir. Estou, porém, solto. Eu mesmo, dentro das minhas possibilidades de personagem disperso, sem nada disso por trás, construo aos poucos uma trajetória por minha conta e risco. Coloco em cena uma primeira dama e ainda não sei detalhes de seu sequestro porque não o produziram, de forma prática e inteligível. Tenho apenas a companhia de um taxista, igualmente perdido e também personagem, mas menos empenhado em contribuir com a história em termos de provocar sua evolução. Não conheço o motorista, ele não me conhece e por enquanto estamos jogados nesse pedaço de enredo, sem saber como seguir adiante ou tendo ideias muito vagas a esse respeito.  

Numa delas a primeira dama está no porta-malas do táxi. A história começa daqui. Como viemos parar nesta situação é problema do roteiro, se aparecer algum. Questões de técnica narrativa que, neste exato momento, não importam tanto. No meio da conversa eu disse a senha correta e o motorista respondeu que estava OK. Deveríamos levar a jovem mulher do presidente para um cativeiro e esperar.

- Esperar o que?

- Ainda não sei - respondeu ele.

Paramos num terreno baldio, num longo plano ao meio dia. A primeira-dama, no entanto, já se livrou do porta-malas, que esteve entreaberto o tempo inteiro, desde o falso sequestro, e se apresenta como quem sabe das coisas, nossa chefa. Encolhidinha lá atrás, teve tempo de passar batom nos lábios. Resultado: estamos todos envolvidos: eu, o motorista e a primeira dama.

Estamos no meio do caso mais rumoroso do País. O presidente falou em rede nacional e todas as forças policiais vasculham cada ponto da cidade. No descampado, tomamos providências. A primeira dama avisa que não dá mais para retroceder. Pretende chefiar uma operação contra o governo. Pensei que haveria um resgaste. Não há. O caso é político. Meu papel parecia secundário, mas não é. Pensei no recurso da perda de memória para estar aqui, sem muita informação e no início achei que era jornalista ou agente do serviço secreto. Mas ela me pede os mapas, os planos, as referências para situar os outros insurgentes em pontos estratégicos.

Como personagem, obedeço. Abro minha pasta e lá estão eles, os papéis, todos com minha letra nas observações das margens. Fiz correções, ajustei horários, designei pessoas para esta ou aquela atividade no plano de tomada do poder. O sequestro da primeira dama, com a participação da própria, seria uma demonstração de força. Depois viriam os ataques ao palácio por meio de militares aliados da mulher do presidente. Eu deveria saber por que ela participa disso. Não sei e, no entanto, todas as evidências, os papéis, levam a crer que minha participação é mais importante do que eu imaginava. Só que nunca me meti em política, nem em crimes, muito menos em sequestros.

O roteiro finalmente aparece. Um estafeta corre em nossa direção e chega ofegante com um calhamaço de duzentas páginas. Não há primeira dama no porta-malas nem táxi. Os dois personagens vão embora, aborrecidos. Estou sozinho, no descampado, e ainda ensaiando minhas falas.

Continua...





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