segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Personagens desnecessários X


Não conte comigo para achar lógica nas coisas. Não sou bom nisso e você tira por minha vida, onde sempre fiz o contrário do que deve ser feito, nunca segui manuais, preferi erro e acerto, a maior parte erro, e às vezes chego num canto, num fundo, num muro e esbarro em outras coisas que impedem até mesmo as tentativas ou as tornam desnecessárias. Nesse estado me encontro agora, enquanto você pede conselhos para seu infortúnio, bem menor do que o meu, quase nada em relação aos problemas que não tenho enfrentado ultimamente, pois prefiro ficar à espera, parado no tempo, e este é outro problema, senão o maior de todos. Mas também é uma solução.

Só aos detalhes me apego, num voo da abelha, por exemplo, e deixo para amanhã ou para nunca uma entrevista de emprego, a arrumação da casa e o cuidado com a saúde. Meu cabelo cresce e não aparo, adio ainda o dentista, porque adiei o trabalho que faria para pagar o dentista, e deixo para outra hora a abertura de envelopes de cobrança, o condomínio atrasado e uma conversa com Adélia, cujo tema já é conhecido e chato, o mesmo de sempre, se ajeite, acorde, saia dessas etc.

Você tem um problema. Eu tenho um entrelaçamento de problemas e espero que todos se revolvam por si próprios, a partir do nada, prescrevam, percam a validade, deixem de importar, sei lá, qualquer acontecimento fora do normal, um milagre, talvez. O monstro só faz crescer de forma desordenada, e algumas partes dele ganham mais urgência do que as outras, virando uma bagaceira em que não adianta resolver nem mesmo o problema principal, porque ficaria sem forças para os de menor porte. Os problemas secundários, não tão secundários assim, trabalham de forma independente e cada um guarda seu grau dificuldade. Entende? É como estar num caso crônico e agudo ao mesmo tempo.

Sou, portanto, menos preparado nessas horas. Não trato de mim, como tratar dos outros? Por sorte existem diversos na mesma situação, conheço vários, e com eles convivo num clima mais confortável. Ninguém cobra ninguém para não lembrarem-se da própria inércia e dos planos preteridos. Fugimos desses assuntos, como se não existissem, pelo menos na hora em que tomamos umas cervejas e outras coisas e deslizamos na conversa mole, nas frases sem sentido, no voo de uma abelha sobre nossa mesa, no mesmo boteco, onde penduramos contas e parte da vida.

Sempre estamos esperando por mudanças, mas nem tanto, às vezes só o acaso resolve, e por isso, por não mexer uma palha para a ocorrência de algo, seja o que for, é que simplesmente perdemos a noção de que as dificuldades se avolumam de qualquer jeito, por conta própria, enquanto a resolução de certos casos, ou de quase todos, requer a nossa presença. Nós não saímos do lugar. O que acontecer, aconteceu e pronto. Também fingimos que não temos demandas morais. Tudo fica por conta do momento, um atrás do outro, numa sequência de noites, porque dormimos durante o dia.

A pergunta é por que vivo e vivemos assim e não de outra forma, seguindo a rotina e a regularidade, respeitando as convenções e os expedientes. Não tenho resposta. Especulo apenas – e não espero ser seguido por você em minha experiência. Especulo apenas que a vida é breve e os tijolos empilhados cairão de uma forma ou de outra, em algum instante, seja você um empreendedor ou um vagabundo. Pelo menos sorvo o real – ou próximo disso -, em doses de álcool, sexo ocasional e na mais doce experiência humana – o sono. Não falo dos sonhos. Apenas do momentum em que deslizo para a inconsciência, ainda sabendo quem sou, e quando acordo, espero repetir a mesma dormência dos sentidos.


Há muitas desvantagens sociais nessa forma de vida, mas fosse o contrário, fosse eu um homem de intensas possibilidades e negócios, em algum instante, quando se apagarem as sensações, tudo dará no mesmo. 

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