1.
Olhava para o teto, refletindo sobre o
tema vago daquele dia: a vida desprovida de alma, apenas uma existência que
começa e finda e cai no esquecimento. Tinha hábitos teatrais muito bem dosados,
gestos combinados com palavras, além de citações adequadas ao contexto. Um
sucesso. Na sala, alunos se inebriavam com o discurso cheio de citações bem
postas, e postas de maneira natural, sem pedantismo aparente, ao passo em que
elucidava, ou quase, por que não somos quase nada num universo tão vasto e
porque, mesmo assim, valia a pena viver. O pessimismo otimista do professor
carregava certa animação; sorvia cada frase como um sorvete. O nada enchia seu
vácuo interior como se algo fosse, ou fosse um gás intelectual capaz de chamar
a atenção de uma garota bonita e inquieta, de óculos, figurino perfeito para a
personagem desejada por ela, provavelmente candidata à cátedra ou a coisa muito maior.
Como num filme, soava a campainha e ele se
recompunha, fechando um livro ou uma mão contra outra, suspirando, cheio de
energia para a próxima aula. Em casa escrevia seus pensamentos superiores com
calma e vinho. Religião era um tema sempre presente em suas reflexões por ser
melhor do que o ateísmo em termos de literatura, nada além disso, obviamente.
As melhores citações vêm dos deuses e de seus desejos, pois o professor
identifica o desejo como principal característica dos deuses, inclusive do
nosso Todo Poderoso monoteísta, Ele, como escrevem, em caixa alta. Além do
mais, as religiões sempre têm rios a atravessar, como o Jordão e seus
afluentes, irrigando uma planície de trigo, uvas e azeitonas, e depois os
mares, mortos e vivos ao mesmo tempo, como o gato de Schrödinger. Enfim, o
professor era dado a ruminações, às vezes confusas, mas ele dava um jeito de
levá-las à sala de aula de modo organizado. Curto e grosso, como sempre dizia a
menina, sentada na primeira fileira, saia curta, igual a filme pornô, embora
sempre fizesse perguntas muito pertinentes – algumas até melhores do que as
respostas.
Segundo período de Filosofia. Era professor mais cobiçado, por sapiência e
marketing, tanto faz. Todos queriam aulas daquele homem de livros publicados e
canal no Youtube. A moça, de 24 anos, sentia-se uma sumidade. Escolheu o
professor por seu niilismo charmoso, roupas casuais até demais, e uma enorme
capacidade de convencimento. Quase uma técnica. Suas frases saíam em forma de
ondas; só que ondas imprevisíveis, cheias de reviravoltas, inclusive no campo
moral, em que determinados comportamentos eticamente aceitos, pareciam coisas
abomináveis ao professor. Ou o contrário: práticas condenadas pelos
departamentos jurídico e religioso, na verdade deveriam estar abertas, sem
preconceitos, como a questão das drogas. Vale ressaltar que o professor não era
um usuário e só às vezes, em festas da universidade, dava umas tapinhas numa
inocente maconha. Só para ser coerente com suas ideias e, claro, para não
quebrar aquele círculo tão naturalmente construído. Indo nesse caminho, e até
falando um pouco de suas próprias elucubrações, ele conseguia satisfazer todo
mundo sem precisar dar um fecho na história; deixava no ar para amadurecer
naquelas cabeças juvenis e levemente histéricas. Ela, no entanto, estava mais
atraída pela possibilidade de confrontar o professor, jogá-lo no canto da
parede, sem chances.
Não rolou. O professor escapava de todas,
com requinte, consciente da armadilha, mas fazendo que não. A coisa terminou
virando um jogo apreciado por ambos e pelos colegas da classe. Uma encenação
sempre esperada, em que ela perdia com prazer, extasiada diante do professor,
mas sempre esperançosa de pegá-lo de algum jeito. O jeito foi partir para a
ignorância e seduzi-lo. Há todo um jogo, cujos transcorrer e regras são demasiados
longos para o espaço disponível. São também difíceis de descrever. Ficam para
depois.
Seguro de si, ou jeito de seguro de si, o
professor entrou na sala de aula para mais observações sobre o absurdo da
existência, embora detestasse o existencialismo. Ele achava que havia criado
uma doutrina própria, mas não tinha certeza, poderia ser retalhos de outros
autores, pois nas ciências humanas não há aceleradores de partículas para
detectar os modos de encarar a existência. Tinha algumas restrições, como não
transar com alunas, e a moça de óculos havia chamado sua atenção. Especialmente
a calcinha branca. Ele maldisse tais pensamentos, tão animalescos, e começou a
falar para sua turma.
Nesse dia realmente atrapalhou-se. Não no
conteúdo. Na forma. Enquanto dissecava com toda vontade de potência que as
leituras de Nietzsche lhes deram, não parava de olhar para a calcinha preta,
desta vez exposta de forma mais expressiva.
A cena foi percebida por todos, entre o espanto e o voyeurismo, numa
situação da qual o professor safou-se ao dizer que o comportamento humano está
sujeito a condições bizarras, como a que se passou, e prometeu que na próxima
aula trataria do assunto de maneira mais ampla.
Só que a menina esperou por ele, lá fora,
encostada no carro como uma pinup num car wash, acenando com mãozinhas
falsamente inocentes, acenando e dando saltinhos, como uma cheerleader, mas num
estilo a fazê-lo entender que tal performance era caricatura, uma encenação
jocosa num final de tarde. Talvez dessem
uma volta por aí, e talvez discutissem mesmo a sério e, depois disso,
espontaneamente, ocorresse o inevitável. Assim ocorreu.
O professor estava encurralado em seu
próprio desejo; um desejo de deuses, poderia pensar, mas não era isso que
pensava quando entrava na sala. Pensava num fraquejo teórico, numa queda ética.
Mesmo porque a tentação era diária. Ela sempre na frente, do mesmo jeito,
tentando massacrá-lo em público, citando frases de alcova, e respectivos
pensadores, e transformando estas em contradições para acertá-lo. O que ela
queria dizer: você é uma fraude e por isso aconteceu. Você foi desmascarado na
essência, pois tudo que pensava deixou de existir; a potência deixou de
existir. Ela pensou em tudo isso, mas não disse nada. Apenas deixou que
ocorresse mais vezes, enquanto ele mergulhava no desconforto de sentir-se
canalha.
O desejo era maior e mais amplo. O desejo
teria que ser expulso, por causa de suas consequências morais e filosóficas,
muitas vezes nefastas. Mas não havia jeito. O sol filtrado da janela da sala
batendo em sua camiseta fininha, formando tiras - com luz, sem luz, a beleza
quando jovem, e a reunião dessas cenas não lhe soavam bem, tinha cara de
romance barato, tinha o realce da canalhice, e poderia ocupar parte de sua
mente, talvez até afastando pensamentos mais densos de sua área primordial. O
desejo, no entanto, não se apegava a detalhes.
2.
O velho é daqueles que descobrem uma
novidade com anos de atraso e sai com essa novidade adiante, convicto, tentando
provar que, descoberta por ele, a história, embora conhecida de todos, ganha o
direito de repetir-se, numa segunda versão mais aprimorada. Mais ou menos
assim: foi descoberta por pessoas que não souberam interpretá-las. Agora eu
estou aqui para esclarecer e iluminar.
Podemos até supor que é ensimesmamento em
estado bruto, a certeza de quem já passou por tudo, mas no fundo um orgulho
sempre ferido, disfarçado de altivez. Talvez, não. Ele procura apenas
justificar sua defasagem, tentando consertar a situação para não parecer
atrasado e velho. O certo é que dá opinião sobre tudo, falada e por escrito,
pois tem a ânsia de estar por dentro e gosta de plateia, mesmo as
condescendentes. Mas acho que seu maior prazer, infinitesimal para os jovens, é
sentar-se sozinho e escutar uns boleros do seu tempo.
3.
Meu trabalho é manejar a opinião pública.
Com minha expertise, posso fazê-la pender para um lado ou outro, ao gosto do
freguês, e ainda dou garantias de até um mês, quando não se não falará em outra
coisa, a não ser sobre você, ou não se dirá nada, caso seja o caso.
4.
Nessas horas, sempre eu me fodo, pois
acredito, vou em frente, mas ninguém me segue, e termino aguentando as
consequências sozinho. Tudo combinado. É amanhã, às 8 horas, e lá estou com o
equipamento, tudo em cima, e nada dos meus amigos. Volto para casa, penso
naquilo um pouco, e mais tarde estarei pronto para o que der e vier.
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