Carros da polícia surgiram no meio do mato,
enquanto eu passeava com um cigarro na boca, no tempo em que era proibido fumar. Eu não sabia por que tantos homens naquela
operação, vários destacamentos armados, e desconfiei que o negócio fosse
comigo, pois num raio de quase quinhentos metros não via ninguém descumprindo a
lei. Sem saber o que produziu do nada aquelas luzes vermelhas piscando no meio
do mato, passei a andar mais rápido, cada vez mais apressado, quase correndo, e
aí uma viatura se deslocou em minha direção e o soldado saltou dela, armado,
ordenou o “mãos ao alto” e gritou: “é ele”.
Eu já tinha jogado o cigarro no chão, lá
atrás, e não havia provas contra mim, pelo menos nesse caso, mas o caso era
outro. Estavam atrás de um fugitivo do presídio, condenado a 30 anos, cujo rosto
parecia com o meu, pois quando o policial mostrou a foto do sujeito, já
examinando meus documentos, eu mesmo fiquei impressionado. Era igualzinho a mim.
A primeira coisa que me veio à cabeça foi o conselheiro titular Goliadkin,
personagem de Dostoievski às voltas com um homem que lhe usurpa a identidade.
Além de ser a minha cara, o foragido tinha o meu nome: Jose Emiliano Pereira.
Enquanto eu era preso, algemado, desviei a
atenção para um filme onde um homem se vê diante de sua cópia, num duelo, e a
cópia termina matando o verdadeiro, embora a reprodução seja tão real a ponto
de pensar: “matei a pessoa errada”. Naquele momento eu não sabia mais de mim,
se era o José Emiliano que fugiu ou o que não tinha nada a ver com aquilo.
Talvez eu fosse o conselheiro titular Goliadkin ou sua cópia.
Fui conduzido de forma muito coercitiva ao
presídio e lá indicaram minha cela, arrumada de maneira familiar, como eu
arrumava meu quarto, e na prateleira perto da cama a mesma sequência de
pertences dispostos do meu jeito: barbeador, escova de dente, sabonete Phebo e
o livro O Duplo, marcado na página onde o conselheiro titular Goliadkin
realmente se enrola ao dar-se conta das atividades de seu homônimo. Eu,
Emiliano José, ou ele, Emiliano José, nós dois, digamos assim, éramos acusados
de assassinato, sendo que eu nunca tinha visto o outro, então fugitivo, embora
tivesse a consciência de não ter cometido qualquer crime.
Pedi para ser confrontado com ele, seja
como fosse, e uma acareação resolveria nosso problema, a partir de um cotejo de
informações. Eu sabia onde estive nas últimas horas e poderia provar. Desse
modo, ele, meu outro, ficaria em sua cela e eu iria embora. A polícia achou
minha defesa fraca, senão absurda; O advogado também achou. Ficar preso, então,
tornou-se um problema secundário. Eu queria saber “quem é ele?”, ou melhor,
“quem somos nós?”. Na cela, sozinho, descobri numa caixa de papelão fotos da
infância dele, ou minha, uma vez que as situações ali fotografadas envolviam
ocorrências do meu passado. Lembro de um retrato em polaroide de 1986. Estava
lá, perdendo a cor.
Essas perguntas sem respostas que me custaram
seis meses de cadeia, até encontrarem aquele que é parecido comigo, igual para
ser exato, e o sistema jurídico ficou confuso. A acareação, enfim, foi feita.
Eu diante de mim ou de minha cópia, deu-se numa sexta-feira, às 19 horas.
Poderia pensar na grande injustiça de estar
preso no lugar de outro; eu inocente, ele culpado, naquele momento em minha
frente, como se fosse um espelho. No meio, um escrivão de polícia, espantado,
supôs que talvez fossemos gêmeos, mas não havia justificativa para o mesmo
nome: Jose Emiliano Pereira.
O outro foi
preso de bobeira, passeando no mato, com um cigarro na boca.
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