Os cochilos dados lá fora me encheram de
cansaço; durmo e acordo mal. Dores pelo corpo. Mesmo assim é bom. Desde início
do século passado observo o tempo passando e luzes apagadas no começo da manhã,
barulhos da cidade, o Sol sob a névoa nos primeiros passos do dia. Só isso é
muito melhor do que nada. Ainda tem o almoço e os analgésicos; mais tarde o
tempo vai mudar. A chuva diverte mais do que o cinema.
Não sei o que estou procurando, mas sei o
que não quero. Não quero ir. Hora após hora e logo um ano, mais outro, uma
década, duas, três, quatro e já são dez. Passei da idade em que naturalmente se
morre para tornar-me motivo de curiosidade. Muitos se foram antes de mim, quase
todos. O importante agora é puxar pela memória e dar-me alguma nostalgia. Não
sou um homem deste século, mas observo-o de longe, do meu mundo sumindo;
mudanças épicas e talvez inúteis. Ainda gosto de novidades e das pessoas, mesmo
à distância. Quão animadas ficam; ou confusas e espantadas. Mas, enfim,
sentem-se dentro do mundo, movendo-se como o mundo. Não é o meu caso. Estou
dando uma olhada, quem sabe a última.
Festejo mais a faculdade de olhar do que o
objeto olhado. Poucas pessoas aparecem, mais perto, mesmo assim é bom. Na minha
idade ninguém consegue ver muita coisa. Às vezes nem lembrar-se. A memória de
um único amigo, morto há dez anos, sumiu de repente e ficamos sem assunto. Eu
ia visitá-lo nos primeiros meses, mas ele deixou de ser ele. Perdeu a
capacidade de guardar o passado, mesmo um passado de dois minutos. Foi ficando
estranho e despedi-me de vez, só por desencargo de consciência. O pequeno
animal careca ficou para trás, babando, tristonho sem saber por que.
Até o ano passado eu saia às ruas,
vagaroso, vestido à antiga. Restaram duas janelas, uma para o pátio interno,
outra para a rua. Fico na cadeira, olhando pequenos acontecimentos: a vida da
vizinha, sempre ocupada, andando pelo apartamento de ponta a ponta, recolhendo
brinquedos de crianças, espanando moveis e quando para diante da TV é só por
segundos; desliga desinteressada, e volta ao vaivém doméstico. Ou então, o
mundo menor, formigas em linha até o buraco no canto da varanda, talvez meio
milhão de formigas, cumprindo a mesma sina de ir, vir e morrer o tempo todo sem
que a fila se desfaça.
Penso muito. Já não me preocupo com a
qualidade moral dos meus pensamentos. Eis a vantagem imensa de estar vivo e só.
Posso alinhar o mundo de acordo com minha vontade, passar por cima das regras,
ensimesmar-me sem medidas. São vaidades sem valia no mundo real, mas importa
muito nessa idade, mesmo na despedida, enquanto se pode. Mais tarde haverá um
mundo sem janelas.
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