sábado, 1 de abril de 2017

Em Movimento 5


Quando tínhamos TV, vi um programa sobre o mundo sem pessoas. Cidades tomadas pelo mato, prédios rachados, tigres e rinocerontes passeando em grandes avenidas. Os animais de grande porte ainda não chegaram, mas o resto é parecido. Acabou a água encanada e a luz elétrica. Não há negócios nem empregos para mover o dia. Apenas circulamos por ai, atrás de novidades e restos úteis de lixo antigo. À noite, nos sentamos em volta fogueira, como nos primórdios do fogo, e assamos cães vadios à moda chinesa.

Já se passaram muitos anos desde o evento que nos deixou cercados por edifícios cobertos de junça, a pior erva daninha do mundo, e mesmo assim achamos comida em apartamentos tomados pelo lodo; comida vencida no século passado, quando existiam indústrias e supermercados. Além de aparelhos de som e pilhas, que ainda guardam energia. As pilhas e o fogo movimentam a sociedade, plenamente adaptada aos novos tempos. Dá para ir levando porque a população foi bastante reduzida pela falta de prática num ambiente tão necessitado.

Dizem que o governo central mantém-se na capital, igualmente estragada pelo tempo, mas dele não temos notícia há meses. Os informes oficiais não chegam mais, por falta de combustíveis para os carros oficiais; se é que sobraram carros e mesmo que tenham sobrado as estradas estão sob o mato.

Não sei se sou a pessoa ideal para contar o que sucedeu aqui, mas existe pouca gente ocupada nessa área. Tomei o ofício para matar o tempo. Também não sei quem serão os leitores de tal situação, pois em nosso passado havia mais leitores e até livrarias e hoje não há nada disso. Nosso passado tinha tudo que não temos hoje, nesta parte da vida, e é estranho que para trás tenha ficado também a nossa ficção científica, já concretizada e desfeita, e o agora vivemos num um romance de época remota - a tentativa de começar de novo, a partir de quase nada, ou de ficar parado, vendo o que acontece.

Claro, restam alguns livros e quem não viveu aquela época, cheia de modernidade e conforto, pode ter uma ideia de como era a vida quando as coisas funcionavam. Máquinas de lavar, jogos eletrônicos, partículas entrelaçadas e linhas regulares de metrô. Tudo encolheu, talvez até as estrelas tenham desistido da sua expansão, voltando ao momento inicial, à singularidade em que nos encontramos. 


Mas vive-se, mesmo assim. Soube de casamentos e partos, festas para celebrar o fim das chuvas, assembleias para discutir o passado e o presente e a instalação de um precário serviço de alto-falantes, que às vezes toca Contigo en la Distancia, de César Portillo De La Luz.  

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