Sem lei, a nossa sociedade funciona
precariamente, mas funciona. Não há crimes como antes porque a sobrevivência
tornou-se um ato solitário e às vezes de famílias; não dependemos de patrões ou
empregados. Mas chegou-se ao ponto em que era preciso criar normas de
convivência, talvez escritas, numa terra sem governo conhecido pelos cidadãos –
se é que podemos nos chamar assim.
Em qualquer sociedade - mesmo a nossa, em
colapso -, sempre surge alguém querendo organizar, criar direitos e deveres,
especialmente aqueles que viveram o período anterior, quando a cidade tinha
prefeito e câmara de vereadores. Faz tempo. Agora é cada um por si, entre os
escombros, procurando comida, embora não haja animosidades, pelo contrário. Não
existem mais estatísticas, mas não temos conhecimento de assassinatos e são
poucos os roubos. Não há muito que roubar.
A lei, no entanto, está chegando a partir
de um corolário muito parecido com uma versão laica dos dez mandamentos. Ficaram
“Não roubarás” e “não matarás”, mas questões relacionadas com a mulher – ou
homem – do próximo (a), que não importam tanto nessas ruínas, foram deixadas de
lado. Resolvam-se. Também não amaremos a Deus sobre todas as coisas por termos
outras prioridades. O pequeno conjunto de regras teve, por fim, toques do
código penal do século passado, quando este imenso terreno baldio era um
tribunal.
A carta, como tentam chamar, tem poucas
palavras. Não adianta enchê-la de artigos, pois a criminalidade está ligada à
posse de coisas que se podem vender e comprar. No nosso caso, além da Praça de
Trocas, o escambo, não temos nada perto daquilo que a história registra como “mercado
financeiro”. Existem moedas, por ai, desprezadas. Perderam a referência em
relação a outras moedas e são usadas para jogar damas.
Por enquanto é só isso – uma lei de coerção
moral. Não temos nem queremos o poder de polícia. Ninguém pensa em reconstruir
a cidade. Não temos meios nem teremos. Acho que também falta vontade. O passado nos
deu ruins e bons exemplos, mas resolvemos não seguir nenhum deles. De concreto, herdamos apenas o entulho e
objetos sem as funções para a quais foram fabricados. Uso um fogão de quatro
bocas como armário. Não sabemos ao certo em que ano passou o último caminhão de
gás.
Levamos
a vida assim mesmo, sem quase nada.
Perdemos a civilização moderna, com seus
expedientes e equipamentos e caíamos num cenário mais sombrio das coisas
desgastadas pelo tempo. Não repomos peças, que já não temos, e não há qualquer
organismo encarregado da manutenção das ruas e dos condomínios. Não restaram
instituições: escolas e repartições, por exemplo, são só referências em livros
que achamos no lixo. Em compensação, nos livramos do compromisso da
produtividade e da ascensão social.
Para nossos sábios, que não souberam evitar
o desastre nem revertê-lo, aconteceu o inevitável, conforme as leis da
natureza. Saímos do estado ordenado para o estado desordenado. É assim que
funciona, dizem eles.
Nenhum comentário:
Postar um comentário