sábado, 29 de abril de 2017

Uma visão do inferno


Satanás teve um sono bom. Na manhã agradável e panorâmica, respira a poeira incandescente de estrelas, enquanto lê a "Humani Generis”, enquanto come pãezinhos do Biscottificio Innocenti, enquanto recebe informações sobre a chegada de pecadores. Satanás faz várias coisas ao mesmo tempo e assim cumpre seu papel católico, hospedando os indesejáveis de Deus, em convênio com o Paraíso. O inferno está em alta temporada, negócios a todo vapor, ocupação em torno de noventa por cento.

Nesse dia em que acordou disposto e expedito, Satanás tinha o sentimento do dever cumprido e olhou a imensidão de suas posses como um fazendeiro, um senhor das terras sem limites no espaço e no tempo. Esteve mais tarde com sua mulher, deusa grega decaída, mas de beleza clássica mantida. Ela foi vítima do monoteísmo, vítima de Constantino, vítima da história e da literatura. A exemplo do marido, não envelhece e acumula conhecimento. Os dois se dão bem há séculos e não se cansam de produzir orgasmos e filhos.

Vida tranquila e segura num lugar mal compreendido pelos mortais antes de morte. Um empreendimento e tanto.

No prédio principal, o ambiente tem iluminação a ignis fatuus, produzida pelos próprios viajantes da última viagem, mas sem aquele cheiro de compostos orgânicos voláteis.     Sem muita burocracia, seguem-se: Imigração das almas, Check-in no balcão, Portal de Hades. Só um pouco lembra os livros sagrados, pois Satanás também recorre à Philosophiae Naturalis Principia Mathematica e até obras mais recentes para compor sua estética. O lugar – indisponível em mapas, inclusive os astrais - é decorado à imagem e semelhança de seu dono, com um largo vão modernista cobrindo parte do jardim até o períbolo, onde se destacam figuras votivas e quadros assinados por artistas de eras variadas.

Nada corresponde aos pesadelos associados ao inferno. Ninguém está pendurado pela língua sobre piscinas borbulhantes de sangue. Nenhum rastro do Apocalipse de Pedro. Almas não são torturadas, conforme espalhou Santa Faustina. Não existe sinal daquela desgraceira descrita por Virgílio, que ali exerce sua antiga função de guia turístico. Os nove círculos de sofrimento são uma metáfora, esclarece. A Psicopedagogia é outra. Virgílio chegou como hóspede e foi ficando. “A gente resolve tudo na conversa”, diz um dos preceptores.  

No inferno fala-se o Latim, por conveniência histórica e poética, e os folhetos na portaria informam que o dialeto toscano também é admitido, em alguns casos. De qualquer modo, funciona bem o serviço de tradução simultânea, destinado a línguas vivas e a línguas mortas com seus falantes.

Muita gente trabalha para Satanás e, portanto, resta-lhe tempo para apreciar o universo, desde o início até hoje, por meio de sua apurada veia mais científica do que religiosa. O inferno é uma estação de repouso, lugar de leitura e reflexão; um sanatório de Berghof com alguns graus a mais, com o define um escritor vindo da Alemanha. 
  
Satanás é um livre pensador, embora agarrado àquele contrato com Deus, que o sustém. Negócio de longo prazo e cláusulas bem aceitas pelas partes. Só não sabe por que sua empresa foi escolhida para tamanha tarefa, mesmo sendo ele casado com uma deusa de outra origem. Por obra do pai, do filho e do espírito santo aceitaram-no nesse equilíbrio de forças que mantém a fé em estado febril e as órbitas em suas respectivas elipses. 

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