segunda-feira, 5 de junho de 2017

A bordo


Na cabine, trabalho e atenção; lá ficam os controles, controladores e técnicos. Três turnos de oito horas no comando da nave, como manda a lei trabalhista; pleno emprego a bordo, sem contar a vida social ativa e incentivada. Fora do expediente, cada um faz o que quer, observando apenas o bom senso e a segurança da viagem. No final turno, muitos deixam seus postos e vão direto para a destilaria, que trabalha com matéria-prima colhida na nuvem Sagittarius B2 – aquela com cheiro de rum e sabor de framboesa. Ali servem um dos melhores mojitos do universo conhecido.  

Basta atravessar alguns metros de corredores, em esteiras rolantes, e tudo parecerá festa permanente: casais de mãos dadas, brigas e bebedeiras, casas de shows iluminadas, bares temáticos e cassinos em que nada se perde e nada se ganha. Estão cheios de gente e de apostas imaginárias.  Nesse cenário, passageiros e funcionários enchem as ruas, falam alto e riem por qualquer coisinha.  

A tentativa é reconstruir uma pequena cidade terrena, com suas atrações e desejos, a não sei quantos milhões de anos luz, em que o tempo deixou um tanto de importar e as pessoas cumprem seus papéis num eterno agora ou quase isso.  Mas basta olhar pelas raras janelas para a ver a leve mudança da paisagem, ou pelo menos um pequeno cometa cruzando a estibordo, de vez em quando Acontece quando a nave reduz sua velocidade, em oásis no meio do nada, e então é possível ter ideia do lado de fora. A regra é a nave deslizar no espaço a quase 299 792 458 metros por segundo.

Os personagens passam por todos os processos de uma viagem demorada. Dormem em casulos e acordam noventa anos depois – como nos filmes -, enjoam em nebulosas turbulentas, mas a missão tem o objetivo principal de promover a diversão e eliminar o tédio nesse passeio praticamente sem fim. Muito tempo fora de casa. Quando voltarem – se voltarem – encontrarão seus trinetos em clínicas geriátricas. Enquanto o tempo a bordo de arrasta devagar, conforme prevê a física, a base terrestre envelhece e muda, ou talvez deixe de existir entre a partida e eventual chegada. Pensar nisso entristece tripulantes e passageiros e só a balada permanente garante a paz de espírito.

Caso o som fosse ouvido no vácuo – e tivesse alguém para ouvi-lo – o bate-estaca das boates, os churrascos e pagodes competiriam com os motores de antimatéria da animada espaçonave turística. Eis a narrativa do cosmo: balas aceleradas de silício lá fora, e cá, entre as paredes titânicas, um ambiente urbano, com direito ao ócio – redes e cadeiras de cruzeiro marítimo - e esplendidamente posto a serviço lazer, com pornografia para todos, traficantes de drogas recém-descobertas, sons imitando buzinas de cidades deixadas no chamado grupo local - endereço da remota Via Láctea. Tudo perfeito para a dissipação, enquanto não vem novo sono entre colunas reforçadas e vidros a prova de saídas precoces. Uma nau estelar urbana, em que jovens centenários circulam com garrafas de Bourbon, roupinhas curtas e provocantes, e a necessária alegria estampada na cara porque não haveria outro jeito de resistir à aparente eternidade da situação.


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