1 - Enquanto prendia a pequena plateia,
tudo funcionava. Mas dava-se um tempo e passava a exigir mais atenção, cutucava
seus amigos, como a enfiar-lhes um ponto de exclamação. Mais uns copos e
repetia histórias e a voz ia ficando cada vez mais pastosa até extinguir-se por
aquela noite. Voltava no dia seguinte, inteiramente refeito, como se nada
tivesse acontecido, pois de fato sempre tinha sido assim, há muito tempo, desde
que ainda jovem firmava-se como nome promissor das nossas letras.
2- Em casa, basicamente ele se dividia
entre a feitura de um grande romance, ainda nas primeiras linhas, e a criação
de enredo para conversas. Em determinadas situações, em que se sentia diante de
um “um achado”, ele ficava sem saber se escrevia ou contava. Era bom ver a
reação das pessoas diante de algo fabuloso que, sem ter acontecido, seria ainda
muito mais interessante do ponto de vista formal. Como se pudesse ver a reação
de seus leitores, no caso, ouvintes, alguns encabulados. Pensava desse jeito, gastando frases de
futuros livros – inclusive as da obra-prima empacada - em bebedeiras com
amigos. Uns acreditavam, outros não, e uma parcela achava que tanto faz. Quando
estava tranquilo não conseguia dormir. Preferia aproveitar acordado um momento
tão raro, embora improdutivo. Nesse estado, jamais pensou algo que prestasse. Sentia
apenas o conforto de recordar dias melhores.
3- De volta ao bar. Era só quase isso todo
dia quando se sentava naquela mesa e contava histórias antigas como novidade: a
formação do Bangu, Brigite Bardot, o primeiro satélite artificial em órbita, um
voo no Stratocruiser da PAN AM; coisas desse tipo, que viveu de perto e achou
importante. Muitos só ouviam por educação, mas ele tinha o passado vivo na
memória; parecia mais nítido na hora das reminiscências do que no tempo em que
estava sendo vivido. Foi ele que disse, aos quase oitenta anos. “O que penso
que li no jornal já está na enciclopédia”, escreveu, no último livro, embora já
tivesse dito isso inúmeras vezes.
4 – Passado. Viveu intensamente o tempo em
que foi aclamado em certo círculo. Desconfiava daqueles que lhes davam tantos
presentes. Via nisso uma incapacidade de a pessoa impressionar com as mãos
limpas, sem o brinde, sentia falta de elogios densos. Mas pararam os presentes
e os aplausos e também nunca mais ganhou concursos literários; nem mesmo os de
abrangência municipal.
5 – Inspeção no corpo: problemas. Visto de
fora, a perda dos movimentos. Em sua mente, porém, tinha a sensação de uma vida
oleosa. Todos desse mundo untados por uma gosma compacta, sem cheiro e sabor,
mas com textura viscosa, também sem cor, embora com propriedade pulsante, como
algo vivo, ora juntando, ora afastando as pessoas umas das outras. Quando ele
chegava perto de alguém que identificava – um amigo, um parente, uma
celebridade antiga da TV -, logo era puxado em outra direção. Não havia dia nem
noite nem um sentido preciso de tempo, conforme ele me contou.
6 - Ele não entendia porque estava nesse
processo e seguia assim, carregado pela torrente gosmenta, enquanto era
observado por médicos numa sala de hospital, pois o pulso mal dava sinais de
vida. La dentro, no entanto, as coisas aconteciam inteiramente fora de seu
controle, mas eram intensas e marcantes, embora não houvesse pontos de
coincidência com que vivera até então. O
tecido pastoso em que caíra não impedia lembranças, mas a consciência praticamente
restringia-se àquilo, pois suas energias estavam voltadas para entender o que
se passava em seu corpo mergulhado na indefinição dessa matéria sem nome. Desta
ele escapou, como escaparia de outras.
7 – Com aparência mais velha ainda, o rosto
macilento de personagem de Dostoievski, ele voltou à mesa para contar sua
odisseia nas fronteiras da morte. A teia víscida de seus delírios no hospital
certamente serviria ao romance, como de fato serviu.
8 – Jamais imaginei que um dia estivesse
agora rijo, num caixão, depois de uma luta de foice contra o fim e de uma vida
que parecia o moto perpétuo. Estrebuchou tanto. Pensei que venceria a briga,
especialmente quando buscou ar a ponto de nos sentirmos quase sem oxigênio em
seu leito. Não funcionou. Deu-se o apito fino e constante do monitor de sinais
vitais. Não deixou mulher nem filhos. Só um último livro incompleto, muito
aquém de suas histórias no bar.
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