sábado, 15 de julho de 2017

A gosma pulsante



1 - Enquanto prendia a pequena plateia, tudo funcionava. Mas dava-se um tempo e passava a exigir mais atenção, cutucava seus amigos, como a enfiar-lhes um ponto de exclamação. Mais uns copos e repetia histórias e a voz ia ficando cada vez mais pastosa até extinguir-se por aquela noite. Voltava no dia seguinte, inteiramente refeito, como se nada tivesse acontecido, pois de fato sempre tinha sido assim, há muito tempo, desde que ainda jovem firmava-se como nome promissor das nossas letras.

2- Em casa, basicamente ele se dividia entre a feitura de um grande romance, ainda nas primeiras linhas, e a criação de enredo para conversas. Em determinadas situações, em que se sentia diante de um “um achado”, ele ficava sem saber se escrevia ou contava. Era bom ver a reação das pessoas diante de algo fabuloso que, sem ter acontecido, seria ainda muito mais interessante do ponto de vista formal. Como se pudesse ver a reação de seus leitores, no caso, ouvintes, alguns encabulados.  Pensava desse jeito, gastando frases de futuros livros – inclusive as da obra-prima empacada - em bebedeiras com amigos. Uns acreditavam, outros não, e uma parcela achava que tanto faz. Quando estava tranquilo não conseguia dormir. Preferia aproveitar acordado um momento tão raro, embora improdutivo. Nesse estado, jamais pensou algo que prestasse. Sentia apenas o conforto de recordar dias melhores.

3- De volta ao bar. Era só quase isso todo dia quando se sentava naquela mesa e contava histórias antigas como novidade: a formação do Bangu, Brigite Bardot, o primeiro satélite artificial em órbita, um voo no Stratocruiser da PAN AM; coisas desse tipo, que viveu de perto e achou importante. Muitos só ouviam por educação, mas ele tinha o passado vivo na memória; parecia mais nítido na hora das reminiscências do que no tempo em que estava sendo vivido. Foi ele que disse, aos quase oitenta anos. “O que penso que li no jornal já está na enciclopédia”, escreveu, no último livro, embora já tivesse dito isso inúmeras vezes.

4 – Passado. Viveu intensamente o tempo em que foi aclamado em certo círculo. Desconfiava daqueles que lhes davam tantos presentes. Via nisso uma incapacidade de a pessoa impressionar com as mãos limpas, sem o brinde, sentia falta de elogios densos. Mas pararam os presentes e os aplausos e também nunca mais ganhou concursos literários; nem mesmo os de abrangência municipal.


5 – Inspeção no corpo: problemas. Visto de fora, a perda dos movimentos. Em sua mente, porém, tinha a sensação de uma vida oleosa. Todos desse mundo untados por uma gosma compacta, sem cheiro e sabor, mas com textura viscosa, também sem cor, embora com propriedade pulsante, como algo vivo, ora juntando, ora afastando as pessoas umas das outras. Quando ele chegava perto de alguém que identificava – um amigo, um parente, uma celebridade antiga da TV -, logo era puxado em outra direção. Não havia dia nem noite nem um sentido preciso de tempo, conforme ele me contou.  

6 - Ele não entendia porque estava nesse processo e seguia assim, carregado pela torrente gosmenta, enquanto era observado por médicos numa sala de hospital, pois o pulso mal dava sinais de vida. La dentro, no entanto, as coisas aconteciam inteiramente fora de seu controle, mas eram intensas e marcantes, embora não houvesse pontos de coincidência com que vivera até então.  O tecido pastoso em que caíra não impedia lembranças, mas a consciência praticamente restringia-se àquilo, pois suas energias estavam voltadas para entender o que se passava em seu corpo mergulhado na indefinição dessa matéria sem nome. Desta ele escapou, como escaparia de outras.

7 – Com aparência mais velha ainda, o rosto macilento de personagem de Dostoievski, ele voltou à mesa para contar sua odisseia nas fronteiras da morte. A teia víscida de seus delírios no hospital certamente serviria ao romance, como de fato serviu.


8 – Jamais imaginei que um dia estivesse agora rijo, num caixão, depois de uma luta de foice contra o fim e de uma vida que parecia o moto perpétuo. Estrebuchou tanto. Pensei que venceria a briga, especialmente quando buscou ar a ponto de nos sentirmos quase sem oxigênio em seu leito. Não funcionou. Deu-se o apito fino e constante do monitor de sinais vitais. Não deixou mulher nem filhos. Só um último livro incompleto, muito aquém de suas histórias no bar. 

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