quinta-feira, 10 de agosto de 2017

AV.




Andamos na mesma avenida todos os dias atrás de comida e nossos ternos já estão puídos, nossos corpos em câmera lenta, cansados de subir e descer de prédios vazios, olhando em volta apenas ruínas. Carros parados no vento frio do final da tarde.  Mas entramos no museu e ainda há quadros, embora as prateleiras do mercado não tenham sequer laticínios vencidos ou pães sem mofo ou cigarros, cuja fumaça agradava e desagradava antes dessa ocorrência tão infausta.  O campo, disseram, ainda tem plantações, talvez batatas enterradas ou milharais secos. Não temos como chegar até lá. A água, no entanto, corre como rio na alameda paralela, atrás do grande centro de negócios, hoje coberto de urubus. Não foi um desastre. Foi aos poucos.

Ed.

Vamos ficar apenas com um elevador, informou o síndico, sem antever nem imaginar o que viria. Foi rápido. Logo, o porteiro estava demitido, metade do prédio já não pagava o condomínio, e, aproveitando-se da falta de segurança, veio um ladrão e assaltou três apartamentos. Os moradores mataram o ladrão quando ele tentava fugir pelas escadas. O curioso é que ninguém se lembrou de chamar a polícia. Jogaram o corpo no meio da rua, sem saber se faziam aquilo para dar um exemplo ou protestar contra a ausência do Estado.  Cinco pessoas perderam seus empregos; a do 401 atirou-se do 401. O homem do 202 morreu de causas naturais.

K.

Uma barata passeia livremente dentro do apartamento sem móveis e nem liga para a presença do homem deitado, nu, no meio da sala; vez por outra, como um animal amestrado, a barata passa por cima do corpo e faz pequenas piruetas em torno do umbigo do homem. O homem se levanta, respira fundo, e vai para o saco de dormir no quarto, sentindo-se também um inseto. Agora, ela também está no quarto, circula como Fred Astaire nos rodapés e emite um som melancólico de seus espiráculos; bastava um microscópio e veríamos um olhar expressivo e solidário para o homem.

ASDFG.

Bastava ter ginásio completo e curso de datilografia. Logo uma colocação no serviço público. Ele gostava das máquinas de escrever. Quando chegava ao fim da linha, rolava o cilindro de volta como quem recarrega uma arma, e repetia o mesmo gesto muitas vezes e era bonito quando todos no escritório estavam em sincronia; parecia uma orquestra. Ele preferia o barulho surdo das teclas sobre papeis intercalados de carbono. Quanto mais cópias, mais surdo o barulho. Quanto mais força, mais as letras chegavam mais nítidas à última folha.  Às vezes, o chefe aparecia para perguntar quem datilografou isso aqui e reclamava ou dizia meus parabéns. Aprendeu num curso noturno. ASDFG até pegar prática, até escrever sem olhar para a máquina, até conseguir usar os cinco dedos, até escrever a última carta, em três vias, a quem interessar possa.  

NY

O pequeno apartamento era muito pequeno. A cama ocupava a sala inteira. Um banheiro espremido no canto e uns cinco palmos de recuo para a pia. Quando eu saía para o trabalho, recolhia a cama à sua posição vertical, varria o chão e armava no espaço vazio uma mesa com um jarro de flores. Pensava muito naquela providência, pois estava arrumando a casa para nada. Ninguém iria ver a decoração. Nunca recebi visitas. Na volta do trabalho, desfazia tudo, deitava, olhava para o teto creme, pensava na volta ao meu país e dormia. O barulho da cidade ajudava. Som contínuo de sirenes, trânsito mesmo na madrugada. Às vezes pensava em abrir a janela, que corria na lateral, mas a vista era apenas a parede do prédio vizinho, em tijolo aparente. Abaixo, um precipício sem luz e algumas vozes. Minha principal atividade noturna era descer à lavanderia, que ficava no subsolo. No meio de pessoas caladas, poderia ressurgir a moça do 27º andar, que tinha um tique nervoso, mas era bonita; ou o dominicano que cantava baixinho sucesso de Cuco Valoy, para si mesmo, enquanto esperava a roupa secar. Quando eles não estavam lá, eu quase só olhava para a escotilha da máquina, como se fosse TV, cuecas e meias torcidas formando imagens de coisas e gente. Basicamente isso consumiu sete anos da minha vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário