Por Joao Bosco Alves
Sousa
Acordei muito cedo
para não fazer nada. Quase não reconheci o senhor no espelho do banheiro que me
encarava. Senti pena daquele outro que imitava meus gestos. Tiro os olhos do
espelho e procuro o creme dental que já está no fim. Pensei um impropério, mas
não pronunciei em voz alta como se não quisesse acordar alguém ou a mim mesmo.
Será que estou preso dentro de algum pesadelo? Vou até a geladeira e o que me
resta de desjejum é o resto de uma salsicha que sobrou de alguma refeição.
Engulo com certo enjoo e arremato com um copo d'água. Sento pesado na poltrona
para fumar um resto de cigarro e pensar numa agenda do dia que não tenho.
Resta-me apenas todo o dia inútil. Sorvendo lentamente cada trago para que
durasse uma eternidade, vejo o infame bilhete de cobrança sendo enfiado por
baixo da porta. Sei que é o síndico pelo latido histérico do cão que ele sempre
leva para passear naquela hora. Penso em mandar enfiar o bilhete no cu ou
apanhar a bosta do cachorro com ele. Mas não me resta muita disposição. Continuo
sentado à espera de Godot. Mantenho os olhos fixos onde antes tinha uma
televisão e agora só restam expostos fios, poeira e um controle quebrado. Faz
algumas semanas que a tevê virou comida e maços de cigarro. Não sou mais smart,
nem conectável e nem tributável.
Saco de um livro do
Maiakovski que está na prateleira e leio um trecho de um poema:
"Caros
camaradas
futuros!
Revolvendo
a merda fóssil
de agora,
pesquisando
estes dias escuros,
talvez
perguntareis
por mim."
Ultimamente só
aqueles a quem devo perguntam por mim, ou o maldito síndico que me vigia. O
estômago dói, as vísceras fazem um barulho estranho, protestam exigindo uma
xícara de café para desfrute...
Meu tempo agora é
marcado por um arremedo de relógio solar. A réstia de luz insidiosa avança pela
janela. Pego os restos do que sobraram de mim e como a um cão que levamos para
passear resolvo sair, fugir da caverna que se tornou o apartamento. A
segunda-feira se repete como um feitiço do tempo. Ao chegar à porta eu paro
suando frio, imaginando o síndico me espreitando, me tocaiando na escada, no
elevador... Preciso estancar a dignidade que foge das minhas veias. O que resta
do homem que fui escolhe sair pela janela... Não será mais um segunda como as
outras eu me tornarei pássaro e voarei para longe das contas, do desespero da
infâmia de todos os dias...
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