As
luzes foram se apagando aos poucos, como o Big Rip, que é a teoria sobre a
expansão do universo até o ponto em que todas as galáxias estarão isoladas umas
das outras. Um astrônomo amador estava entre os perdidos nas trevas e disse
isso apenas em termos comparativos porque havia a sensação de que, mesmo no
escuro, as coisas iam se afastando – o próprio chão parecia se esticar como
borracha e dai em diante as pessoas se apressaram em tatear entre os escombros
da cidade, procurando alguma coisa para comer ou onde se abrigar, ou pelo menos
encostar a cabeça em algo seguro. Mas paredes e muros duravam pouco em seu
lugar e o próprio grupo, de mãos dadas, fazia um enorme esforço para manter-se
unido.
O
certo é que se passaram noites sem dias e a energia não voltava nem havia jeito
de saber quando voltaria. Findaram as chamas das velas e isqueiros e o facho
das lanternas. Não se viam as estrelas,
cobertas de nuvens, e começou a chover sem parar – chuva horizontal, estranha,
vinda do Norte -, enlameando a caravana que seguia meio sem destino pela
avenida principal interminável, pois prédios antes vizinhos agora estavam
distanciados por quarteirões. Homens e mulheres de negócios, gente que teve
bons empregos, inclusive na Bolsa de Valores, estavam agora na mistura de lama
com escuro, uma substância pastosa e dispersa que não conseguia untar o que
restava da cidade.
Seguiram
no tato, ensopados, cuidando para não serem separados pelo tecido do chão em
movimento, e a chuva lateral continuava, atrapalhando a busca. Seria preciso encontrar
um teto, uma singularidade naquele estiramento, pois a enxurrada argilosa, com
todos os cheiros da cidade parecia mais acelerada e a água já estava dos pés à
cintura. Um homem foi jogado contra um carro, que também já se deslocava no
lamaçal ralo, e mesmo com a dor da batida gritou que aconteceu uma coisa séria,
e quando perguntaram se era uma enchente, ele respondeu que era muito pior.
-
Tudo está se derretendo - disse ele - e o grupo ficou sem saber se era uma metáfora
ou se era isso mesmo. Logo os sinais ficaram mais à vista, como o prédio
adiante, que adquiriu a mesma consistência da lama e depois se misturou a ela,
tornando líquidos apartamentos e salas comerciais.
-
Siqueira, fudeu tudo! – gritou o último homem da corrente de mãos. Tentava segurar-se
num poste com o braço solto, que também se distendia e se afastava e lá na
frente se diluía. Ninguém conhecia Siqueira nem importava naquele momento.
Sob
uma marquise, finalmente, encontram uma porta ainda sólida. Estava fechada à
chave, com água barrenta até o meio, mas apresentou-se um mecânico com um
pedaço de ferro e fez uma alavanca para tirar a porta da frente. Lá dentro não
havia água nem lama, embora estivesse também escuro. Umas duas horas de
procura, como cegos, e de repente uma luz clara, iluminando uma sala branca e
impecável, sem decoração, apenas branca. No centro, um homem em pé, também de
branco, perguntou como estava lá fora. Há dias estava trancado ali. Não ficou
chateado com a presença dos estranhos. Pelo contrário, parecia alegre por ver gente.
-
Acho a situação anti-intuitiva – disse o astrônomo amador.
-
Tudo caminha para a desordem – respondeu o homem de branco.
-
Eu sei, eu sei que é assim – retrucou o astrônomo amador – Só quero saber por
que é especificamente assim, como agora?
-
Porque pode ser de qualquer jeito -, respondeu de novo o homem de branco. O
homem não sabia ao certo como estava o lado de fora, mas sabia o que era. Tranquilo
em seu bunker, informou sobre o aparente colapso. Pelo visto vinha preparando
aquele lugar há muito tempo. Não era santo nem profeta; era só um cara
prevenido e bem informado. Além de encerrar as questões entrópicas do astrônomo,
ele deu muitas referências sobre o estado da matéria e ainda cálculos precisos
sobre a composição daquilo que envolvia a cidade e que, ao final, envolveria
tudo.
Costas
apoiadas nas paredes deixaram a sala suja de lama, mas o homem de branco não se
incomodou. Disse apenas que não tinha como hospedar tanta gente porque o
estoque de alimentos não daria para todos.
-
Vamos ficar porque somos maioria – disse um advogado, exaltado, como num
tribunal.
O
homem de branco ouviu a proposta sem tomá-la como ofensa ou ameaça e apenas
acrescentou que também ele teria que deixar o lugar em alguns dias.
-
Talvez não seja o fim – disse ele. – Talvez continuemos a viver, dissolvidos,
misturados à matéria viscosa. Talvez seja só uma mudança de estado.
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