A memória é fraca. Algumas começam a
fraquejar no meio da velhice e morrem antes de seus donos; outras sobrevivem
aos pedaços: situações vistas a vividas, nomes de personagens e datas se
transformam em ondas perdidas no espaço. Por isso, algumas pessoas escrevem
livros de reminiscências ou mantém uma agenda. Minha avó anotava tudo em
papeizinhos e os colocava numa caixa de sapatos que ela se esquecia de
consultar. A memória remota, no entanto, às vezes se preserva por mais tempo,
talvez porque é a primeira impressão de um cérebro jovem e ainda cheio de
espaço para armazenar lembranças. Ontem é um transtorno, mas o século passado
surge brilhante e nítido, como o sangue escorrendo na principal rua da cidade, onde
havia um matadouro de gado, enquanto onde Seu Augusto, meu vizinho, seguia para
o grupo escolar.
Caixeiros viajantes, cassacos, ciganos e
homens armados fumando cigarros Astória pareciam bem instalados na memória de
seu Augusto, mas ele não tem registro do almoço do dia. “O que comi?” - pergunta
de si para si e depois deixa de lado para ver-se com seus pensamentos da
infância e juventude.
Quase sempre seu Augusto, o velho, é o jovem
que observa os cassacos e seu trabalho escravo na construção da rodovia,
trazendo o progresso e mais distração, conforme disse o prefeito – um senhor baixinho
e simpático – e conforme disse o padre - alto, forte e alemão. Veio parar ali
não se sabe como, mas a igreja tem recursos e condições de levar a palavra de
Deus até mesmo aos cassacos, naquele fim de mundo onde a memória de Seu Augusto
observa a estrada de rodagem ganhando asfalto e uma lagartixa percorrendo a
traseira de um trator quebrado. “A lagartixa tinha um olhar condescendente e
solidário”, observa seu Augusto em suas anotações para um livro de memórias.
A princípio Seu Augusto não falaria tanto
de sua vida. Estava mais interessados na vida dos cassacos – trabalhadores
eventuais e nômades da antiga Inspetoria de Obras Contra as Secas - e outros
tipos da sua região do tempo, numa volta ao romance dos anos 30, como ele mesmo
me contou. Já existe até um livro sobre com esse título, “Casacos”, de José
Cordeiro de Andrade. Mas tudo bem, disse seu Augusto, eu só faço isso para não
perder a memória.
Seu Augusto está bem situado em meados do
século passado, quase outra era, quando parecia que o mundo estava sendo criado
naquele momento e, tomando sua vida como referência, estava mesmo. Vale a pena ver a animação de seu Augusto
quando fala sobre Getúlio Vargas e programas de rádio, além de suas coisas
cotidianas, sua visão do mundo a partir dos livros de Graciliano Ramos e das
conversas na praça. Com os dias de hoje,
só dificuldade. Mesmo antes da doença, ele já não entendia a pressa dos acontecimentos.
Também achava que ele próprio estava devagar ou, mais precisamente, havia uma
conspiração do tempo – o de fora e o de dentro - contra seu final de existência.
Um de seus colegas da época de repartição,
Gilvan Vieira Guedes, também escritor bissexto, deixou anotações sobre a vida
difícil desses trabalhadores em uma pasta a que tive acesso porque ele é meu
pai. O mesmo tom. Uma sociedade nascendo no Brasil pós-revolução de 30, embora
Gilvan tenha desancado Getúlio, que não admirava por causa do governo
autoritário. Mas o mundo nascia ali, perto do Rio Ipanema, numa cidade
sertaneja calorenta de dia e fria à noite e onde algumas pessoas passavam fome
e outras liam Émile Zola.
Os cassacos viviam em condições difíceis e
carregavam suas redes para onde fossem. Não tinham qualquer documentação. Os
contratados das obras contra as Secas, do Ministério de Viação e Obas Públicas,
tinham salários, carteira assinada e também problemas. Gilvan e seu Augusto liam Zola e se
preocupavam com os cassacos. Só isso lhes dava a classificação de comunistas.
Anos mais tarde, em 1964, já casados, ambos
tiveram que fugir para evitar a prisão. Entocaram-se numa fazenda de um
expedicionário da FEB e ali por perto também encontraram cassacos. Um deles
estava encolhido num canto, tremendo no calor, maleita, ele disse, mas parecia
coisa mais grave. O homem foi melhorando aos poucos, depois de um uísque Cavalo
branco, depois mais outra; só duas, porque era caro.
Seu Augusto achou o homem muito doente,
talvez fosse Schistosoma, pensou naquela hora, pois a barriga estava inchada, e
talvez fosse doença de Chagas, Trypanosoma cruzi, o bichinho do barbeiro, tão
comum nas taipas onde os cassacos estendiam suas as redes. Um buraco no
coração, sangue venoso e arterial se misturam numa pororoca venenosa, seguida
de morte horrível, como se diz atualmente.
- Melhor chamar o doutor Fernando, que sabe
do nosso esconderijo. Fernando é comunista mesmo, pelo menos votou no marechal
Lott; soube que esteve na palestra de Octávio Brandão. Falar nisso você precisa
ler “Canais e Lagoas”, o livro de Octávio. Quer dizer: ele não é só comunista; é
escritor também.
- Não dá – disse Gilvan -. A gente só pode
sair daqui quando tiver informações de João Farias, que conhece gente no
exército. Isso tem cara que vai demorar até 65 ou mais.
Seu Augusto e Gilvan ficaram bebendo, em
copinhos de ágata – primeiro uísque, depois cachaça -, e conversando com o
cassaco, que preferiu a cuia. Tinha uma conversa aprumada e disse que já esteve
em situação melhor, muito antes, na mesma repartição, quando chegou ao cargo de
auxiliar de contabilidade, mas fora demitido a bem do serviço público por
Augusto Pereira Lima, o próprio seu Augusto, na época em que ele foi diretor de
pessoal, em Palmeira dos Índios. Nenhum
sabia do outro. Pouco se viram, na verdade, mas o caso trazia indícios contra o
cassaco, ali no canto, se ajeitando. Sem provas, repetiu o homem, tornando a
falar.
-Assinei o papel com um revólver
engatilhado em minha cabeça – contou o cassaco. – Não fiquei com nada, nenhum
tostão, caí na miséria depois daquela comissão de inquérito.
- Era o que me faltava: o Dreyfus do sertão!
- lamentou-se seu Augusto. Mas ele estava
mesmo preocupado em ter levado um homem àquela situação, como presidente do
inquérito administrativo, e encheu-se de culpa. Foi uma coisa bem marcante. A
partir daí, seu Augusto começou a envelhecer e o que veio depois só não se perdeu
por causa das anotações de Gilvan, datilografadas em duas vias, hoje quase
sépia e parte comida pelas traças.
Gilvan morreu em 2015. Deixou escrito que
ele e seu Augusto terminaram chamando Dr. Fernando, que levou o cassaco para o
posto de puericultura. O problema era subnutrição. Ninguém foi preso, mas os
dois tiveram que sair de Alagoas porque o departamento estava cheio de
delatores do novo regime.
Seu Augusto, quase 100 anos, mantém a
memória como uma seta do tempo ao contrário, dos anos de 1960 aos anteriores, e
dai revê a cara abismada do cassaco inocente, o sangue escorrendo na rua do
comércio e o asfalto quente levantando fumaça. Lá no fundo das lembranças, as
normalistas de Santana do Ipanema cantam boleros de Consuelo Velazquez.
Um comentário:
Que maravilha!!! Seu Augusto ,Senhor Gilvan.♥️
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