Uma barata passeia livremente dentro do apartamento
sem móveis e nem liga para a presença do homem deitado, nu, no meio da sala;
vez por outra, como um animal amestrado, a barata passa por cima do corpo e faz
pequenas piruetas em torno do umbigo do homem.
O homem se levanta, respira fundo, e vai para
o saco de dormir no quarto, sentindo-se também uma barata, igual no livro, embora Metamorfose
não seja sobre um inseto especifico. Agora, ela também está no quarto, circula como Fred Astaire nos rodapés
e emite um som melancólico de seus espiráculos; bastava um microscópio e
veríamos um olhar expressivo e solidário com o homem.
O apartamento precisa ser desocupado.
Despejo. A barata parece saber disso e comporta-se quase como um cachorro
lamentando por seu dono. O homem percebeu, mas olha a barata pensando em outras
coisas, o fim do emprego, o fim de todos os empregos possíveis para alguém que
faz uma tarefa que não existe mais.
E pensa no tempo do emprego
- Lembra-se do tempo dos empregos? – diz o
homem à barata -.Tive uns. Bastava ter
ginásio completo e curso de datilografia. Logo uma colocação no serviço
público. Eu gostava das máquinas de escrever. Quando chegava ao fim da linha,
eu rolava o cilindro de volta como quem recarrega uma arma, e repetia o mesmo gesto
muitas vezes e era bonito quando todos no escritório estavam em sincronia;
parecia uma orquestra. Eu preferia o barulho surdo das teclas sobre papeis
intercalados de carbono. Quanto mais cópias, mais surdo o barulho. Quanto mais
força, mais as letras chegavam mais nítidas à última folha. Às vezes o chefe aparecia para perguntar quem
datilografou isso aqui e reclamava ou dizia meus parabéns. Aprendi num curso
noturno. ASDFG até pegar prática, até escrever sem olhar para a máquina, até
conseguir usar os cinco dedos.
Bons tempos – exclamei à barata.
A lei
Pensando por esse lado eu cometo crimes
porque a vida é curta e não adianta viver na merda durante cem anos se for tudo
igual todo dia e mais à frente a gente vai perceber que não viveu nada. Então eu roubei e fui preso. Nem liguei.
Estava previsto. O que tinha sido bom foi muito bom no momento do ocorrido.
Valeu a pena andar como rico por mais de dez anos e agora sei como funciona tudo
lá em cima. Primeiro eu quis todos os objetos e tive. Depois comprei algumas
pessoas; umas de modo suave, outras explicitamente. Quanto custa? É tanto. Vamos nessa. Se
estiverem pensando em prostitutas ou políticos, estão errados. São outros
profissionais, gente dos poderes, aos quais meus negócios ilegais
interessam. Gostam como a coisa é feita.
Sem sair de casa. Pelos computadores. O programa é bom, os nomes somem,
enquanto o dinheiro chega ao destino livre desses intrusos nos negócios - a
polícia, por exemplo. Com facilitações adequadas, cada um pega a sua parte. Eu
compro, mas ganho ainda mais, pois só investi nisso a vontade de fazer. Não
tenho culpa porque só roubo quem já tem muito, embora os clientes, na maioria
dos casos, também tenham muito e às vezes mais. Uns roubam os outros por meu
intermédio, no mercado de capitais, e se agora me encontro privado da
liberdade, tenho o espírito livre para criar outras maneiras de burlar a bolsa
de valores e outros grandes templos do capital.
Cada um vive do jeito que quiser e embora
alguém possa considerar que o mesmo não vale no meu caso, uma situação ilícita,
na maior parte das vezes, pelo menos, eu respondo que as leis mudam com o tempo
– o que vale hoje, não vale amanhã – e que se a própria justiça funciona desse
jeito, deixando uns crimes de lado e acrescentando outros, eu também posso
estar sujeito a oscilações; posso inclusive levar em conta que tenho o direito
de me arrepender, devolver o dinheiro reclamado, ou o que sobrou. Nessas horas,
quando tudo se encerra, tem que ter desapego. Devolva o que puder ajudar em sua
libertação. Conheço o judiciário como a palma da mão, como se conhece o inimigo
e procuro me antecipar, sem contar outras providências, de ordem mais prática e
também muito mais caras.
O resultado é que consigo sair – sempre consegui
–, mas saio quebrado em termos de finanças, em dívida com advogados e ainda
devendo no ramo das “outras providências”, conforme disse. Saio e tento
recomeçar a vida dentro dos padrões, tudo em dia. Só que a falta do que tinha e
perdi me leva a querer de novo e vejo que os caminhos ditos legais são muito
precários em remuneração, exigindo mais trabalho em troca de menos dinheiro.
Então volto à cena, com outros truques e justificativas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário